Friday, October 8, 2010

sem título

um bicho aberto na berma
pêlo e carne rosa e cinza
não sei que bicho desfeito na beira da estrada
não se se comida caída se um carro que o empurrou para ali

somos isto. presos por uma corda que nos une nos faz ser o que somos sob o nome
este respirar, pulsar vivo que nos fala e por vezes se revela como as emoções nos sonhos
ou numa voz que nos fala e que à falta de melhor e tentando cristalizá-lo chamamos eu
ruindo à passagem do tempo que é o ruído do que somos e do que virá
condicionados para dar e dar e dar. uma cunha aguçada em movimento de relógio e vibrar furioso de átomos e ruído fremente
de ir devorar
e damos
damos e tiramos vorazes famintos impacientes e sempre prestes a rebentar vomitar e ejacular famintos sem saber saber de quê
esta fome sem nome vazio que a si mesmo se come
sob o dogma da obrigação de crescer e metastizar tri semestral anualmente
e acabamos na berma
restos usados. comida ou desperdício
que nada tem que ver com o ruído do que somos e a passagem e o que virá
cancro frio. passar pelo passeio com pressa e nem parar nem abrandar num ritmo hipnotizado e pendular perante a morte assim rasgada como uma flor
uma explosão que abre o absurdo das horas e a mesquinhez à luz cinza de uma qualquer manhã de setembro

só actos simples de uma réstia de calor humano sob a pressão furiosa das horas permitem respirar fundo e sentir que mais espaço se abre
fazer o impulso febril de ir e avançar diluir-se numa réstia
uma memória morna do que pode ser ser humano
de nos abrir aos dias e calar a vontade de afastar o olhar fechar os olhos
calar esta dor muda que passamos as horas a tentar abafar que nos quer arrastar para um escuro uterino que protege
e de ir ir e procurar por entre os estilhaços do que somos algo inteiro
encostar as mãos ao flanco quente e vivo do que somos e falar
uma corrente terna de palavras que adormecem o corte dos chicotes e a fúria das horas
uma corrente de sons soprados sussurrados com o calor das mãos que despertam à noite a vontade de ser no dia seguinte
pôr os dedos na água que passa e ver nela o reflexo do que somos.

Saturday, January 2, 2010

Denis Johnson

The man hanging out of the wrecked car was still alive as I passed, and I stopped, grown more used to the idea now of how really badly broken he was, and made sure there was nothing I could do. He was snoring loudly and rudely. His blood bubbled out of his mouth with every breath. He wouldn't be taking many more. I knew that, but he didn't, and therefore I looked down into the great pity of a person's life on this earth. I don't mean that we all end up dead, that's not the great pity. I mean that he couldn't tell me what he was dreaming, and I couldn't tell him what was real.


Denis Johnson
Jesus' Son

Saturday, October 17, 2009

McCarthy, again

When he went back to the fire he knelt and smoothed her hair as she slept and he said if he were God he would have made the world just so and no different.

— Cormac McCarthy (The Road)

Friday, June 26, 2009

7:48 hammersmith and city line wesbound

à espera do outro lado do muro
da vez de falar
da vez de entrar
depois de bater
de contar uma piada
(e ser engraçado)
à espera do outro lado do muro
a ranger os dentes
a morder o grito e a espuma da fúria
a abanar o corpo dorido
e cansado
tão cansado
tão

à espera
a viver no futuro
a fazer contas ao dinheiro
e ao tempo
a viver as horas como um horário de trabalho
a fazer amor como quem faz tarefas
à espera do metro
à espera de encontrar sei lá o quê num olhar cruzado
terno e demorado
num sorriso

fervente numa religião febril de razão
e uma subtil e inexprimível certeza
que se torna loucura
suburbana
fúria fantasia
idiossincrasia
afastamento

à espera a empurrar fantasmas e montanhas
a bater nas paredes até rachar as pedras e os nós dos dedos
a gritar no escuro
até perder a voz
e o fôlego
e a força nas pernas
e o excesso de sono que os faz
esperar
pela sexta-feira
pela hora de sair
a próxima bebida
que pare de chover que o telefone toque
o que ela disse e eu disse e depois eu disse
e o calor de uma proximidade viva
a próxima piada
a loucura partilhada

não
não.
à espera não
lembro-me de ter seis anos e já saber e me ver de frente a olhar e não à espera mas a olhar em [frente
de haver por trás um campo largo com um carreiro aberto na erva
(tudo respirava vivo até o vento e o céu e a terra num redondo baixavam e subiam
lentos
como o flanco de um cavalo )
de olhar em frente com um anjo mudo ao meu lado
não à espera
e de saber já quem era




inspirado por “Oh, the places you’ll go!”, de Dr. Seuss

Thursday, July 31, 2008

urgência sem voz
febre muda na procura de um alívio que não vem.
um orgasmo. expiar. gritar e fazer a terra tremer
bater até rasgar as mãos
em sangue e bater até sangrar
mas não o fazer.
um alívio que não vem
uma urgência circular. muda

uma dor à procura de uma garganta para um grito
loucura geométrica. demográfica.

paralisia. fome cega. gesto contido
religião de fantasias onanistas à qual pagamos mensalidades para sonhar
o escape no veneno de um orgasmo
e o sémen agora no monitor gelado
e tremeluzente
vírus
e sono e sono e sono

o que pulsa sob o sangue e todos os nomes?
que resposta sob os séculos. a loucura ácida. o logos?
que saída para a náusea de labirinto? (se há)
sob os símbolos e deuses e o inconsciente que é outro símbolo
sangue e a pressão das palavras empilhadas como cimento
e presas na garganta

que dizer agora no início de tudo
no perpétuo início em que os símbolos apodrecem
(as estações. homem. mulher. os deuses todos. mundo. história.)
e rodamos rodamos
que dizer. que palavras e gestos furam a paralisia e o peso de pedra na garganta
que dizer
que palavra é o fim

não é a adversidade, a essência do real, que cala.
é um suspiro
com o peso do nada
a náusea rotina e o vazio da vida como um horário de trabalho
não é a adversidade
mas a ausência. não a política. não um amor sexo arte família
mas um suspiro, como palavra final

É ter lá ido
(o sangue nas mãos. as unhas gretadas) e lá ser no fundo mais um novo início
efémero escrito a cicatrizes e nomes dos que tocamos
e nos tocaram
e com quem escrevemos a história das horas.
a inquietação no sangue viva
e viva
e permanente

modus scribendi

da altura recta do pinheiro cresce a secura aberta de uma pinha que guarda na sombra dos veios abertos
pinhões
como um segredo

Sunday, March 9, 2008

Da suprema indiferença cega do mundo que é a sua beleza

He stood hat in hand over the unmarked earth. This woman who had worked for his family fifty years. She had cared for his mother as a baby and she had worked for his family long before his mother was born and she had known and cared for the wild Grady boys who were his mother’s uncles and who had all died so long ago and he stood holding his hat and he called her his abuela and he said goodbye to her in Spanish and then turned and put on his hat and turned his wet face to the wind and for a moment he held out his hands as if to steady himself or as if to bless the ground there or perhaps as if to slow the world that was rushing away and seemed to care nothing for the old or the young or rich or poor or dark or pale or he or she. Nothing for their struggles, nothing for their names. Nothing for the living or the dead.

Cormac McCarthy, All the Pretty Horses